2014-03-18

Sonhar

O tempo passa vagarosamente enquanto ela ouve o sino tocar.
Dentro de uma casa de bonecas ela sorri enquanto esmaga o que restou do seu brinquedo preferido.
A imagem de uma irmã que nunca teve projetada em plastico, panos e imaginação.
Ferramentas necessárias parar criar um mundo de fantasia enquanto ouvia seus pais brigarem.

Em sua inocência pensava que tudo ficaria bem depois, mas não ficava.
Em sua inocência pensava que a culpa era dela por não ser a melhor filha do mundo, e ela era.
O que uma criança poderia fazer para apagar os pecados dos pais?
Como uma criança poderia entender que não existia amor, apenas comodismo.

No meio de intrigas geradas por motivos fúteis transformava a convivência num fardo
O pai nunca presente, a mãe sempre desleixada e a criança sempre chamando a atenção.
E então a única forma de convívio só era possível por entorpecentes.
Álcool, antidepressivos e drogas.
Formas de se livrar da realidade estragada que eles mesmos não tinham vontade de consertar.

Tudo parecia um castelo de cartas apenas esperando para desmoronar.
O alicerce frágil chamado casamento apenas esperando para ruir.
E então levar todos para o fundo do oceano.
100 metros de água abaixo!

O tempo acelera bruscamente enquanto ela ouve o fogo queimar.
Escondida debaixo da cama ela chora enquanto é esmagada pelo o que restou de sua casa.
A imagem de sua irmã não nascida era projetada em sua mente a guiando para o Caminho.
E mesmo que o destino fosse o vazio a vista era acolhedora.

Em sua inocência pensava que aquilo era o fim, mas não tinha acabado.
Em sua inocência pensava que a dor acabaria, mas nunca tinha doído tanto.
A única coisa que restava era Sonhar.

Errar

Enquanto ela continuava a fazer o que era certo, se colocando em segundo plano, ajudando os mais próximos, sempre vinha a vontade de errar.
Ela se perguntava se deveria ser igual os outros? Errar da mesma maneira várias vezes, nunca admitir teus error e jogar a culpa nos outros?

Sentia inveja de quem conseguia fazer isso. Escolher ficar com a pessoa errada, comprar um carro ruim ou mesmo tirar uma foto desfocada.
Mas era covarde demais para isso. O que o mundo pensaria dela se fosse apenas mais uma?
Como ficaria a imagem da perfeição que ela criou por todos esses anos?

Enquanto ela continuava sendo feita de tonta, sendo passada para trás, tendo sempre que socorrer as pessoas, sempre vinha a vontade de destruir.
Ela se perguntava como seria deturpar as opiniões dos outros, semear a discórdia enquanto ri no fundo e fazer as pessoas perderem a força de espirito.

Sentia inveja de quem conseguia fazer isso. Quem conseguia ignorar os avisos da consciência antes de fazer algo ruim. De quem manipulava o sentimento das pessoas apenas parar terminar relacionamentos, destruir lares e provocar suicídios.

Infelizmente não podia fazer nada disso enquanto restava inocência em sua essência.
Enquanto acreditava que as pessoas eram boa e justas.
Enquanto acreditava que podia existir uma cura para todos os males.

Mas mesmo a inocência pode ser deturpada, desmanchada antes de florescer
e então manipulada para a transformar em mais uma marionete.
Para fazer os seus mestres triunfarem quando o que só lhe resta é a lama.
E a inveja de Errar

2014-02-27

POSSE III

O dia estava cinza, a chuva caía vagarosamente, gotas se formavam na janela de vidro como se estivessem lutando para não cair. Seria uma dia melancólico para a maioria das pessoas, mas não para Ela.

Gostava daquele vento úmido e gelado que a chuva trazia, aquele cheiro de terra molhada que lembrava a sua infância. Também gostava do cheiro de sangue misturado com água. E de limpar as mãos sujas na cascata que se formava no telhado.

Aquilo tudo lhe trazia uma paz de espirito angelical. Quase a fazia esquecer de que tinha acabado de matar uma pessoa. Quase a fazia esquecer dos problemas que isso causaria para ela.

Sequestrar. Torturar. Matar.

Quando dita dessa maneira parecia algo errado.
Não!
Em sua cabeça ela só estava fazendo justiça. Fazendo um favor pra sociedade, tirando o lixo pra fora.

Glória já não existia mais. O que restou foi apenas a memória encravada em uma pagina na internet. Pois todo mundo é imortal agora. Mesmo alguém sem alguma importância para a humanidade ficará para sempre exposta para todos verem como foi a sua vida. E depois de mortos todos se tornam santos.

Enquanto terminava de lavar as suas mãos, ela podia ouvir os gritos abafados da sua nova vítima. Uma garota de 15 anos chamada Isabela ou algo do gênero.  O nome não importava, só importava era o motivo dela estar ali.

Depois de muitas conversas pela internet e alguns encontros pessoalmente, Ela tinha certeza de que deveria acabar com aquela pífia existência. Ninguém verdadeiramente iria sentir a sua falta. O mundo não ia perder a chance de curar alguma doença nem de acabar com a pobreza do mundo.
Não!
Nada de bom poderia vir daquilo.

Mas Ela também sabia que tudo aquilo eram desculpas para matar. O desejo por sangue era mais forte do que tudo. Poder controlar as pessoas lhe excitava! Segurar alguém pelo pescoço até a pessoa ficar pálida a deixava em êxtase.

"Seria doente?"
Sempre se fazia essa pergunta quando a sua sanidade voltava momentaneamente , quando caía na real e via que tudo estava perdido. Não tem mais volta depois de experimentar o gosto do sangue.
Não existe desculpa que justifique seus atos.
Existe apenas o chamado do sangue encoberto pelos gritos abafados.

E o valor distorcido do amor.

2014-01-09

Doença

De poucas coisas tinha certeza, mas uma delas era que ela era como uma doença para as pessoas.
Um vício maldito, uma droga viciante. Algo que mesmo sabendo fazer mal era impossível parar de consumir.
"Até aonde será que eu posso ir antes de me afogar?"

No começo tudo parecia normal. O fascínio pelo estranho prendia a atenção e aguçava a curiosidade.
E então começava uma admiração mórbida pelo bizarro, uma veneração ao falso deus repleta de sacrifícios.
"Até aonde será que eu posso ir antes de cair?"

Continuava com um crescente sentimento de culpa por ser incapaz de ajudar o que não tem esperança.
Uma necessidade de tentar consertar coisas que nem ao menos estão quebradas.
Criando a imagem da perfeição só para depois se decepcionar com a realidade patética.

E depois que terminava, estava livre de toda a podridão da alma que a cercava.
Podia respirar novamente o ar sem aquele cheiro podre da auto piedade.
Recomeçar de novo e finalmente encontrar algo bem próximo da felicidade.
Ou pelo menos alguém que não tem medo de trovões.

E era notável a diferença que a falta que a sua presença provocava nas pessoas.
O tempo se abria, um sorriso nascia e uma vida aflorava renovada.
Porque depois de vencer uma doença você podia sentir a alegria em viver de novo.
E rir do passado como se tivesse aprendido alguma lição valiosa.

O que não seria possível para ela, pois toda a energia que ela sugava das pessoas próximas voltava 3 vezes mais forte como se fosse o mundo cobrando a sua dívida.
E então se encontrava confinada em uma prisão sem grades, se mutilando com as lembranças de todos que passaram por sua vida, levaram um pedaço do seu coração e depois foram embora sem nunca se despedirem.

2014-01-05

Voar

Encolhida num canto com um olhar morto fitando o vazio, esperava a chuva parar.
Como se algum milagre fosse acontecer quando as águas cessarem.
Como se fosse possível reverter a escolha que teve naquele distante dia.

E então o hipnotizante som da chuva tornava a sua melodia enquanto escondia o som do seu próprio choro.
Uma dança misteriosa que envolvia sentimentos conflitantes.
O excesso de amor próprio, o excesso de amor ao próximo.
O ciúmes por saber que não possuía ninguém.

Deitada em sua cama com os pensamentos perdidos em vidas passada, esperava a neve parar.
Como se o frio instantaneamente desaparece-se e o verão voltasse com todo o calor.
Como se fosse possível construir tudo o que foi destruído naquele distante dia.

E então tudo ficava em tons de vermelho enquanto uma lâmina prateada brincava na pele de seu braço.
Uma dança misteriosa que envolvia sentimentos conflitantes.
A falta de amor próprio, a falta de amor ao próximo.
O ciúmes por saber que não possuía ninguém.

Ninguém conseguia se manter tempo bastante para entrar em sua cabeça.
Ninguém conseguia se manter interessado bastante para entender a sua mente.
Ninguém queria saber de nada além de si mesmo, e de poder chorar a tuas próprias lamúrias.
Ninguém queria saber de nada além de si mesmo, e de poder descartar as pessoas.

Sentada em seu carro lembrando do que tinha acabado de fazer, esperava a pista acabar.
Todas as pessoas que já amou algum dia, estavam morrendo por suas próprias mãos.
E enquanto cortava os seus corpos, entrava em um estado de plena felicidade.

"agora que eu cortei as tuas asas,
não tem mais para aonde voar.
agora que eu terminei as nossas vidas,
teremos todos o mesmo lugar para voar."


2013-12-28

POSSE II

~Atenção~


Enquanto ficava navegando aleatoriamente em perfis de estranhos no Facebook, uma pessoa lhe chamou no chat:
"Ei, vc ta ai?"
"Estou, o que você quer?
"Quero... companhia"
"Ok. Chego aí em 10 minutos"

E assim pegou o carro e foi até a casa de sua amiga necessitada. Uma amiga problemática que já tinha até tentando se matar antes. Era a única pessoa em que ela confiava, e a usava para contar todos os seus problemas, suas desilusões amorosas e sua dificuldade em manter o peso. Sinceramente? Preferia que ela tivesse morrido mesmo.
O que não  entrava em sua cabeça era como alguém poderia viver das sobras dos outros. Viver nas sombras das pessoas. Não dar o melhor de si e mesmo assim por a culpa no mundo.
Isso a enojava.

Quando chegou na casa da amiga, nem mesmo bateu na porta e ela já a recebeu toda saltitante:
"Oiie Maria!! Você chegou rápido!"
"Olá Glória. Eu já disse que não gosto que você me chame assim"
"Perdão... Quer que eu te chame do que então?"
"A partir de hoje... você não vai me chamar de mais nada"
E subitamente, acertou a cabeça da Glória com um bastão. Mas diferente dos filmes, ela não desmaiou, apenas caiu no chão se contorcendo em dor. "Melhor assim. Prefiro que veja o que vou fazer com ela" Pensou.

Enquanto ficava navegando aleatoriamente em perfis de desconhecidos no Facebook, ela percebia que todos só queriam chamar Atenção. Seja por seus méritos, seja por seus fracassos. Seja pra mostrar as festas maravilhosas que tinham ido, seja pra mostrar o fim de semana depressivo na frente do computador. Todos estão carentes! Carentes por afeto, por amor, por ódio e principalmente por Atenção.

Quando Glória acordou sem entender o que estava acontecendo, se viu amarrada em uma cama num quarto escuro e vazio. Ficou desesperada e começou a gritar por socorro:
"Socorro! Alguém me ajude! Maria...? Não tem graça! Me solta daqui!!"
"Eu... já disse que odeio... ESSE NOME!" Gritou enquanto pegava uma corda e começou a estrangular Glória.
Enquanto Glória morria lentamente, viu no reflexo dos seus olhos a imagem da perfeita calma. Não sentia nada em matar uma amiga. Na verdade estava fazendo um favor para ela mesmo.
Mas então algo lhe ocorreu. Por que acabar com aquilo tão rápido? E todos os anos aguentando as reclamações dela? E quantas vezes tendo que ver sua amiga se cortando e mostrando as fotos para todos verem? Ela não gosta de Dor? Então eu vou lhe dar Dor!
Soltou a corda do pescoço de Glória, e sussurrou em seu ouvido:
"Você sempre quis morrer mas nunca teve competência para tanto. Eu vou lhe dar o que você quer, no futuro. Mas enquanto isso você é toda Minha! Meu objeto! Meu animalzinho de estimação! Minha para amar e odiar! E.... se se comportar bem, no final.... eu te livro dessa Dor.
Porque eu sou Aquilo que você nunca vai ser. Eu sou a Coragem que você não tem! Eu sou a Apatia que você sempre quis ter. Eu sou o Meio e o Fim! E acima de tudo... eu sou a tua Amiga. E Amigas devem cuidar umas das outras, não ;)"
~

2013-12-23

POSSE I

"Segue os relatos que escrevo sobre uma vida tenebrosa que eu tive. Aonde não sabia o que era o Sol, não conhecia o Carinho e a Felicidade era inexistente.
Mesmo eu sabendo que provavelmente ninguém ira conseguir ler isso a tempo, deixo aqui toda a minha dor."
-Diário de Glória.
30 dias antes de ser capturada.
Tentou se matar 2 vezes.

~GLORIA~


Acordei de forma súbita, como sempre acordava. O cheiro de podridão, sempre presente, era difícil de se acostumar. Mesmo que dias tivessem passado, eu não tinha mais noção do tempo. Quando você não tem que acordar cedo pra ir pra escola ou escutar a voz gentil da tua mãe falando pra se levantar cedo para aproveitar o domingo, não existe mais medida para o tempo.
Eu estava morrendo de tédio E medo. O medo só durava até que ela me causasse dor. E nos momentos de dor eu encontrava Esperança. Esperança de que tudo pudesse acabar naquele momento. Mas não acabava.
Ela ainda continua me agredindo. Continuava me punindo por coisas que eu nunca fiz. Ela era Doente, precisava de ajuda. Ela estava Sozinha e ela era minha Amiga.

Ela era a minha Amiga ha muito anos, mas eu não conseguia mais lembrar o seu nome. Na verdade eu não conseguia mais lembrar o meu próprio. Seria Fernanda? Amanda? Não... Acho que era Glória. Sim! Esse seria um nome bonito de se ter.
E como eu deveria chamar a minha captora? Uma vez chamei ela de Maria e ela apenas sorriu e me bateu no rosto. Depois cortou um pedaço da minha língua e desde então eu nunca mais falei uma palavra.
Não tenho raiva dela.

Eu comia uma vez por dia. Geralmente alguma fruta podre ou um pedaço de pão embolorado. Ela dizia que eu não deveria engordar pra não ficar feia.
Amigas cuidam uma das outras, não é mesmo?

Hoje ela não me bateu nenhuma vez. Apenas ficou me abraçando por horas e chorando. Preferia ter apanhado.

Finalmente eu consegui ver o sol. Foi tão bonito! Fiquei olhando até os meus olhos arderem. Ela viu a cena e furou um dos meus olhos. "Não almeje a luz quando você só pode ter a noite!" Ela disse.
Não tenho raiva dela.

As vezes eu conseguia ouvir uma música. Tão melancólica quanto os meus dias aqui presa. Sua melodia suave se tornou a minha trilha sonora aqui. Algo tão bela confinada dentro de um quarto escuro enquanto conta os dias para o inevitável. 
Ela viu que eu estava contando e cortou um dos meus dedos.
Não tenho raiva dela.

Hoje ela veio com um olhar vazio em seus olhos, disse algumas palavras que eu não pude ouvir, e finalmente me libertou.
Enfiou uma faca em meu peito e começou a chorar.
Enquanto o sangue se esvaia do meu corpo, eu pude ver que ela trazia outra garota para o quarto. Eu estava sendo substituída.
Eu tenho raiva dela.
~